VILA MARIA ZÉLIA COMPLETA 103 ANOS

By Amanda Fernandes - 15:30

Conheça a história da vila centenária que guarda tantas histórias e pode ser uma ótima oportunidade de passeio para depois da pandemia.


Antiga Farmácia. Foto: Marcel Mendes Carvalho

Um local que para os visitantes parece uma viagem para década de 1910. Estamos falando de uma vila do bairro do Belenzinho. Ela se chama Vila Maria Zélia e contém diversos patrimônios históricos, que apesar de evidenciarem o descaso do poder público com esse local, ainda reservam uma beleza única e muitas histórias para contar. 

O INÍCIO DE UM SONHO

Foi durante as primeiras décadas do século XX que São Paulo vivia sua industrialização. E durante esse processo surgiam vários nomes, um deles o do médico e empresário Jorge Street (1863-1939), que após ter sucesso em suas fábricas de tecidos no Rio de Janeiro, decidiu migrar para São Paulo, onde iniciaria junto a sua esposa, Zélia Fria Street, uma nova fase de seus projetos.

Zélia Frias Street e Jorge Street
O industrial colocaria em ação seu projeto de vida, que pautaria sua visão de mundo na construção de uma vila com um padrão de vida digno para os operários, contou Zélia Monteiro, de 60 anos que é bailarina, coreógrafa e bisneta do empresário.

Começava, então, em 1912 a construção da primeira vila operária do Brasil, um projeto que abrigaria 2.500 funcionários que trabalhavam na filial do Belenzinho da tecelagem Cia. Nacional de Tecidos da Juta.

Crédito: Folha


Ainda sem nome, a vila foi construída na zona leste de São Paulo. Nela foi construído tudo que os trabalhadores necessitariam, como farmácia, escola para meninos e uma para meninas, creche, igreja, salão de eventos, açougue, praça, um campo de futebol, consultório médico e odontológico, ambulatório e muito mais.

FEITA PARA OS OPERÁRIOS

Na vila tudo seria de fácil acesso para os trabalhadores, e isso fazia parte do projeto de sonho de Jorge Street, pois ele tinha uma visão/desejo que o bem estar fosse de acesso e direito a todos, explicou sua bisneta. Sendo assim, educação, saúde e cultura seriam pontos fortes que o médico iria focar para a qualidade de vida de seus funcionários.

‘’Jorge Street achava que se o operário estivesse bem, isso seria bom para o capital’’, conta Ana Luiza Frangello, voluntária da Associação Cultural da Vila Maria Zélia.

O zelador voluntário da vila, Edélcio Pereira Pinto, de 73 anos, conhecido como seu Dedé, é neto de um dos antigos trabalhadores da fábrica, e conta que seu avô, que era tecelão, dizia que Jorge Street tratava os funcionários como filhos, por isso era tido como paternalista.

Jorge Street


Nas festas de natal e missa do Galo, a família Street participava. Havia uma árvore bem grande e Jorge Street mandava vir presentes da Alemanha para os filhos dos operários, contou a bisneta do médico.

A ARQUITETURA

As moradias também eram feitas pensando nas famílias dos operários. Com aluguéis baratos e descontados diretamente do salário, as casas eram disponibilizadas de acordo com o tamanho da família dos proletariados. Ou seja, quanto maior a família, maior a casa. Na época, em termos de residência para os operários, isso era visto como um avanço.

Rua da Vila Maria Zélia em 1917. Créditos: São Paulo Antiga

Dedé conta que seu avô ficou muito emocionado quando conseguiu uma moradia na vila, concedida por Jorge Street que contratou o tecelão após o conhecer em 1919:

‘’Ele perguntou para meu avô de onde ele era, meu avô então disse que era do interior de São Paulo, de Mairinque, perto de Sorocaba. Então Street disse para ele voltar e trazer sua família, pois já tinha uma casa para eles na vila’’. O zelador conta que a moradia de seu avô no interior era numa casa de pique, feita de barro, e que seu avô ficou encantado ao entrar na sua nova casa na vila.

Até o chão das calçadas era planejado, em especial para as crianças, que poderiam brincar de amarelinha nas calçadas que foram feitas com traçado especialmente para isso. Essa ideia foi de Zélia Fria Street, que tinha um importante papel nas ações sociais da Vila.

O escolhido para construir a vila foi o francês Paul Pedraurrieux. O arquiteto se inspirou nos modelos de vilas europeias que estavam surgindo no começo do século XX. A ideia que Jorge Street queria para as casas, é que fossem dignas, compatíveis com sua visão de justiça social.

Então, em 17 de maio de 1917 foi inaugurada a Vila Maria Zélia, que recebeu esse nome em homenagem à filha do casal Street, Maria Zélia, de 16 anos, que havia morrido dois anos antes, vítima de uma tuberculose fulminante.

Maria Zélia aos 15 anos

Dia da Inauguração da Vila. Jorge Street no meio.

O FIM DE UM SONHO

A família Street acabou acumulando dívidas, e a maneira que encontrou para se salvar foi vendendo a vila e a fábrica em 1924. Os compradores foram a família Scarpa, que acabou mudando o nome da vila para Vila Scarpa.

O novo nome não durou muito. Em 1929, com a crise mundial, a família Scarpa também foi afetada e acabou vendendo a vila para o Grupo Guinle, que retomou o antigo nome do local.

Porém, por conta de débitos fiscais com o Governo Federal a vila e a fabricam foram confiscadas pelo IAPI (atual INSS).


DE FÁBRICA A PRISÃO

Uma época triste para vila foi durante a década de 30, na ditadura Vargas. Com a prisão de Tiradentes lotada, a fábrica, que era então do governo, foi escolhida para se instaurar o novo presídio de repressão política, em 1936, local que os considerados comunistas eram presos.

Eram 700 presos, sendo alguns até famosos, como o historiador Caio Prado Junior e o dramaturgo Paulo Emílio Sales Gomes. O dramaturgo chegou a organizar encenações no presídio, onde ele também escrevia peças.



Os intelectuais que também foram presos, chegavam a dar aula sobre conceitos políticos, filosofia e artes para os demais. Com isso, o presídio ganhou fama de Universidade Maria Zélia.

‘’Foi um período difícil, as pessoas não tinham liberdade. Quando a Goodyear comprou e inaugurou a fábrica, lá havia assembleias dos trabalhadores na porta, e a direção da fábrica tinha gente infiltrada para denunciar isso para a polícia política, para ter repressão’’, relata o professor e jornalista Eduardo Rocha

A situação do presídio não era das melhores. Na época, o Rio Tietê ainda não tinha sido retificado (processo que torna o seu curso reto), por isso era bem próximo da vila e da fábrica. Com isso, o ambiente acabava ficando bem úmido e com muitos mosquitos, o que ajudava na proliferação de doenças.

Mapa da Vila Maria Zélia antigamente; Rio Tiête ainda era ao lado da Vila

Zélia Monteiro conta que seu bisavô ficou muito triste e chorou em ver aquilo que foi seu projeto de vida havia virado um presídio.



UMA PÁGINA MARCADA COM SANGUE

A tentativa de fuga organizada pelos presos acabou em um massacre após o plano ser iniciado e ser descoberto pelo sargento Gregório Kovalenko. Isso resultou na captura de 4 presos que foram fuzilados na frente dos outros demais, como tentativa de servir de exemplo. O professor Eduardo Rocha comenta que foi algo digno de um campo de concentração.

O caso foi noticiado em diversos jornais, e foi muito mal visto pela sociedade que ficou chocada. Isso contribuiu para o fechamento do presídio em 1937. Então, uma parte da fábrica onde estavam as instalações do presídio foi vendida e a outra permaneceu com o governo.

‘’Meu avô contava histórias de muita tristeza que os presos sofreram com Fillinto Muller (um dos comandantes da repressão). É uma página triste da história daqui’’, conta o morador Dedé.

O ESPORTE EM DESTAQUE

A vila também sempre foi muito ligada com a cultura, que é incentivada até os dias de hoje. A cultura do futebol foi marcante.

Famoso na várzea e cedendo grandes jogadores ao Corinthians, o Clube Atlético e Recreativo Maria Zélia foi uma das grandes referências de lazer na vila. O time foi fundado em 1919, por empregados da Companhia Nacional de Tecidos da Juta, com o nome de Juta Belém Football Club. Em 1925, mudou para Associação Athletica Scarpa e em 1935 foi rebatizado como Clube Atlético e Recreativo Maria Zélia.

Com um grande clube de futebol de várzea, o time da vila era tido como um dos melhores. O clube também ficou famoso por revelar grandes jogadores como Nardo, Colombo, Roberto Belangero e Luizinho Pequeno Polegar.

Luizinho Pequeno Polegar, considerado um dos ídolos do Corinthians

Todos jogaram juntos e, após uma partida contra o Corinthians, em que o time da Maria Zélia venceu por 4 a 0, o presidente corintiano resolveu contratar todos esses jogadores.




Além da várzea, o time também participou de campeonatos conhecidos. Ficou duas temporadas na segunda divisão do campeonato paulista, em 1921 e 1922. Em 1925, participou do campeonato municipal organizado pela Associação Paulista de Esporte e Athletica e em 1935, esteve na terceira divisão do campeonato paulista.

Como AA Scarpa disputou o Campeonato Paulista da Terceira Divisão, em 1926 e 1928; e no Campeonato Paulista da Segunda Divisão, em 1927, 1929 e 1930.

O clube também tem um marco incrível em sua história, o time ficou 289 partidas invictas. Sem perder nenhum jogo desde 1962. Até que tudo mudou em 1967, quando o time foi jogar contra o Clube Atlético Carrão, que era mais fraco e ainda ia jogar fora de casa.

Tinha tudo para ser uma festa maravilhosa na vila, mas o atacante Claudio, jogador do fluminense na época, que estava passando sua folga em São Paulo, foi convidado para jogar pelo time da Vila Carrão e acabou com a festa do time após fazer uma partida brilhante.

O jogo acabou 3 a 2 para o time do Carrão, e todos os torcedores do Vila Maria Zélia ficaram desolados com a derrota.


CLUBE ATLÉTICO E RECREATIVO MARIA ZÉLIA

O clube foi fundado pelos moradores, depois do time, e muito mais que futebol, oferecia outras opções de lazer para os moradores da vila, como cinema, bailes, bocha para mulheres, espaço de reunião para festas e muito mais. Não só moradores frequentavam os bailes da vila, mas pessoas de fora também. Foi um local de muitos encontros.

O terreno onde se localizava o clube era do INSS, que sempre avisou que não deveriam construir nada caro, pois um dia a instalação seria destruída. O que de fato ocorreu em 1976, quando o espaço foi destruído para dar lugar ao atual AME da Vila Maria Zélia.

Ana Luiza diz que houve muito choro quando o clube foi demolido, pois os moradores gostavam muito do lugar que havia sido espaço de tantas histórias e encontros.

‘’Tentaram reconstruir no armazém da vila, mas não era a mesma coisa, não tinha o campo de futebol’’, revelou.


Hoje em dia a vila ainda conta com algumas atividades, como comemoração do aniversário em maio, festa junina, festa de final de ano, apresentações culturais que a Associação Cultural da Vila Maria Zélia sempre planeja para levar aos moradores. 


A ASSOCIAÇÃO CULTURAL

Com mais de 20 anos de atuação, ela atua levando projetos culturais na vila, para aproximar as pessoas. Ela já trabalhou realizando diferentes oficinas, como oficina de fotografia com celular, photoshop e grafite, serenata pelas ruas no final do ano, piquenique ao ar livre e bazares.

Dentre as atividades fixas, estão a turma de terceira idade que faz fisioterapia (atividade paralisada por conta da pandemia) e uma horta coletiva com moradores. Além disso, a cada dois meses eles criam visitas guiadas para quem deseja conhecer a vila.

‘’Procuramos fazer atividades que juntem as pessoas e retomem a história da vila, como por exemplo os grafites. Além de aprenderem grafite, os jovens buscaram imagens e a história da vila‘’, explicou Ana Luiza.

A associação já realizou filme e livro sobre os 100 anos da Vila Maria Zélia com depoimentos dos moradores. O objetivo é manter viva as histórias da vila. O livro pode ser comprado na vila e o filme está disponível no Youtube. Confira: https://www.youtube.com/watch?v=0a2uh5CFF7s


Localizada no antigo boticário, que além de servir para receber as pessoas, também é lugar de exposições de fotos e dos trabalhos que são realizados nas oficinas. Também abriga o centro de memória da vila maria Zélia, que contem fotos e objetos.


Portas de um dos armazéns da Vila

UMA HISTÓRIA ESQUECIDA

Apesar de ter uma história importante sobre a industrialização de São Paulo e abrigar tantos relatos marcantes, há muitos anos a vila vivencia um abandono pelo INSS, que é responsável pelos prédios históricos da vila.

As casas foram vendidas em 1968 para os moradores, que até então estavam pagando aluguel para o IAPI, atual INSS. As casas estão em um bom estado, diferente dos prédios.

Sem manutenções desde a década de 90, os prédios estão em ruínas, e mostrando o descaso do poder público com a história da cidade de São Paulo. Ana Luiza Frangello diz que o INSS fala em pôr os prédios em leilões.

Edelcio Pereira Pinto, morador da vila industrial, nas ruínas da escola onde estudou / Zanone Fraissat/ Folhapress

Escola das Meninas na Vila Maria Zélia / Davi Ribeiro /Veja SP




Vale ressaltar que a vila foi tombada em 1992, e além do poder público, há moradores que também não valorizam muito a importância histórica do lugar, é o que conta o morador e professor Eduardo Rocha: a gente vê morador desfigurando completamente a casa, demolindo. Tem casa que foi demolida e construíram um prédio padrão classe média, que não tem nada a ver com a arquitetura da vila.

‘’Por ter todo esse agregado de história entorno dele, teria que ter uma política de preservação maior, partindo dos próprios moradores’’, ressalta o professor.

Dentre as residências da vila, apenas 3 mantém a arquitetura original. Entre elas, uma que foi usada para gravação do filme ‘’O Corintiano’’ de Mazzaropi.

Casa do filme ''O Corintiano'' de Mazzaropi. Foto: São Paulo Antiga


A bisneta dos fundadores da vila conta que aos 18 anos ficou sabendo que a vila ainda existia e resolveu conhecer. Entretanto, o lugar que foi tema para tantas histórias que sua avó a contava, estava bem diferente do imaginado.


‘’Fiquei muito triste ao ver que grande parte do projeto dos meus bisavós, estava em ruínas. Como um projeto que era tão bonito para eles, estava sendo tratado daquela maneira pelo poder público. Lembrar das histórias que me contavam e ver o que eu encontrei foi um choque’’, desabafou Zélia, criticando: ‘’a história da gente está sendo tratada dessa forma, está em ruínas’’, completa. 



REVIVENDO MEMÓRIAS
Bailarina e coreógrafa, em 2014 Zélia resolveu realizar um projeto na vila, organizando uma temporada de 2 meses para ser encenada no local. “Enquanto dançava nas ruínas, é como se eu dançasse com todos os antepassados da família, principalmente as mulheres’’, comenta a bailarina.

Zélia Monteiro/Veja SP

 Além disso, o projeto catalogou todas as fotos e documentos que sua mãe, Celina Street, tinha da vila, de Jorge Street e da Fiesp, federação que o industrial foi um dos fundadores.

A digitalização e catalogação foram finalizadas e está em processo de doação para o Museu do Ipiranga.

‘’Foi muito importante, porque junto com a memória histórica, eu adentrava a história familiar, que passa pelos nomes das pessoas, pelas mulheres da família’’, enfatiza.

Zélia conta que durante a busca das imagens com sua mãe encontraram uma fotografia da família Street, na qual havia a jovem Maria Zélia, dois meses antes de falecer. Na imagem, a menina aparece com um broche, que a mãe da bailarina ainda guardava, e fez questão de presentear a filha com ele.

Nesse dia, faziam exatos 100 anos que a foto havia sido tirada. Zélia Monteiro conta que foi um momento muito forte, 100 anos depois ganhar e tocar num objeto que era da Maria Zélia.

Foto da família Street em 1913 / Arquivo USP


A bisneta também descobriu a importância de sua bisavó para a criação da vila: ‘’muito se fala no Jorge Street, e pouco na Zélia, sua esposa. Mas ele teve uma participação enorme em todo projeto social (da vila). Tem muita foto dela na vila, com as professoras, com enfermeiras da creche. 3 vezes por semana ela trabalhava com as mulheres em projetos sociais e educativos. Foi bem importante ver isso, era algo que eu não sabia, porque não se falava muito. Então, ficou muito evidente esse papel dela nisso tudo. Esses eventos religiosos, culturais, sociais e educativos, tinha muito a mão dela nisso’’.


Ela cita que sua bisavó recebeu uma comenda papal, que foi reconhecida pelo papa da época, Bento XV. A comenda foi doada para a Igreja da Vila.

A VILA ATUALMENTE

A calmaria e o bem-estar estão presentes na vila, o que agrada seus moradores. O zelador conta que o local sempre foi um paraíso na terra, onde todos, até os animais, vivem na mesma sintonia e parecem até ser da mesma família.

‘’Ainda hoje, não temos roubo nem assaltos por aqui, nunca mexeram com nossas crianças. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa história’’, diz Dedé. ‘’digo para as visitas que aqui é um pedacinho do céu’’, conclui.

Capela de São José do Belém / Foto: Tiago Queiroz - 2010/ Estadão
Apesar de grande, a vila que atualmente tem 121 casas, é um lugar que a maioria das pessoas se conhece, mesmo que apenas de vista. Além de calmo, é um bom lugar para as crianças brincarem livremente. Um lugar raro em meio à movimentada São Paulo, e uma ótima dica de quem quer conhecer um pouco mais da história da cidade. 


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