Conheça a história da vila centenária que guarda tantas histórias e pode ser uma ótima oportunidade de passeio para depois da pandemia.
O INÍCIO DE UM SONHO
Foi durante as primeiras décadas do século XX que São Paulo
vivia sua industrialização. E durante esse processo surgiam vários nomes, um
deles o do médico e empresário Jorge Street (1863-1939), que após ter
sucesso em suas fábricas de tecidos no Rio de Janeiro, decidiu migrar para São
Paulo, onde iniciaria junto a sua esposa, Zélia Fria Street, uma nova fase de
seus projetos.
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Começava, então, em 1912 a construção da primeira vila
operária do Brasil, um projeto que abrigaria 2.500 funcionários que trabalhavam
na filial do Belenzinho da tecelagem Cia. Nacional de Tecidos da Juta.
Crédito: Folha |
Ainda sem nome, a vila foi construída na zona leste de São
Paulo. Nela foi construído tudo que os trabalhadores necessitariam, como
farmácia, escola para meninos e uma para meninas, creche, igreja, salão de
eventos, açougue, praça, um campo de futebol, consultório médico e
odontológico, ambulatório e muito mais.
FEITA PARA OS OPERÁRIOS
Na vila tudo seria de fácil acesso para os trabalhadores, e
isso fazia parte do projeto de sonho de Jorge Street, pois ele tinha uma
visão/desejo que o bem estar fosse de acesso e direito a todos, explicou sua
bisneta. Sendo assim, educação, saúde e cultura seriam pontos fortes que o
médico iria focar para a qualidade de vida de seus funcionários.
‘’Jorge Street achava que se o operário estivesse bem, isso
seria bom para o capital’’, conta Ana Luiza Frangello, voluntária da Associação
Cultural da Vila Maria Zélia.
O zelador voluntário da vila, Edélcio Pereira Pinto, de 73
anos, conhecido como seu Dedé, é neto de um dos antigos trabalhadores da
fábrica, e conta que seu avô, que era tecelão, dizia que Jorge Street tratava
os funcionários como filhos, por isso era tido como paternalista.
Jorge Street |
Nas festas de natal e missa do Galo, a família Street
participava. Havia uma árvore bem grande e Jorge Street mandava vir presentes
da Alemanha para os filhos dos operários, contou a bisneta do médico.
A ARQUITETURA
As moradias também eram feitas pensando nas famílias dos
operários. Com aluguéis baratos e descontados diretamente do salário, as casas
eram disponibilizadas de acordo com o tamanho da família dos proletariados. Ou
seja, quanto maior a família, maior a casa. Na época, em termos de residência
para os operários, isso era visto como um avanço.
Rua da Vila Maria Zélia em 1917. Créditos: São Paulo Antiga |
Dedé conta que seu avô ficou muito emocionado quando
conseguiu uma moradia na vila, concedida por Jorge Street que contratou o
tecelão após o conhecer em 1919:
‘’Ele perguntou para meu avô de onde ele era,
meu avô então disse que era do interior de São Paulo, de Mairinque, perto de
Sorocaba. Então Street disse para ele voltar e trazer sua família, pois já
tinha uma casa para eles na vila’’. O zelador conta que a moradia de seu avô no
interior era numa casa de pique, feita de barro, e que seu avô ficou encantado
ao entrar na sua nova casa na vila.
Até o chão das calçadas era planejado, em especial para as
crianças, que poderiam brincar de amarelinha nas calçadas que foram feitas com
traçado especialmente para isso. Essa ideia foi de Zélia Fria Street, que tinha
um importante papel nas ações sociais da Vila.
O escolhido para construir a vila foi o francês Paul
Pedraurrieux. O arquiteto se inspirou nos modelos de vilas europeias que
estavam surgindo no começo do século XX. A ideia que Jorge Street queria para
as casas, é que fossem dignas, compatíveis com sua visão de justiça social.
Então, em 17 de maio de 1917 foi inaugurada a Vila Maria
Zélia, que recebeu esse nome em homenagem à filha do casal Street, Maria Zélia,
de 16 anos, que havia morrido dois anos antes, vítima de uma tuberculose fulminante.
Maria Zélia aos 15 anos |
Dia da Inauguração da Vila. Jorge Street no meio. |
O FIM DE UM SONHO
A família Street acabou acumulando dívidas, e a maneira que
encontrou para se salvar foi vendendo a vila e a fábrica em 1924. Os
compradores foram a família Scarpa, que acabou mudando o nome da vila para Vila
Scarpa.
O novo nome não durou muito. Em 1929, com a crise mundial,
a família Scarpa também foi afetada e acabou vendendo a vila para o Grupo
Guinle, que retomou o antigo nome do local.
Porém, por conta de débitos fiscais com o Governo Federal a
vila e a fabricam foram confiscadas pelo IAPI (atual INSS).
DE FÁBRICA A PRISÃO
Uma época triste para vila foi durante a década de 30, na
ditadura Vargas. Com a prisão de Tiradentes lotada, a fábrica, que era então do
governo, foi escolhida para se instaurar o novo presídio de repressão política,
em 1936, local que os considerados comunistas eram presos.
Eram 700 presos, sendo alguns até famosos, como o
historiador Caio Prado Junior e o dramaturgo Paulo Emílio Sales Gomes. O
dramaturgo chegou a organizar encenações no presídio, onde ele também escrevia
peças.
Os intelectuais que também foram presos, chegavam a dar
aula sobre
conceitos políticos, filosofia e artes para os demais. Com isso, o presídio
ganhou fama de Universidade Maria Zélia.
‘’Foi um período difícil, as pessoas não tinham liberdade.
Quando a Goodyear comprou e inaugurou a fábrica, lá havia assembleias dos
trabalhadores na porta, e a direção da fábrica tinha gente infiltrada para
denunciar isso para a polícia política, para ter repressão’’, relata o
professor e jornalista Eduardo Rocha
A situação do presídio não era das melhores. Na época, o
Rio Tietê ainda não tinha sido retificado (processo que torna o seu curso reto), por
isso era bem próximo da vila e da fábrica. Com isso, o ambiente acabava ficando
bem úmido e com muitos mosquitos, o que ajudava na proliferação de doenças.
Mapa da Vila Maria Zélia antigamente; Rio Tiête ainda era ao lado da Vila |
Zélia Monteiro conta que seu bisavô ficou muito triste e
chorou em ver aquilo que foi seu projeto de vida havia virado um presídio.
UMA PÁGINA MARCADA COM SANGUE
A tentativa de fuga organizada pelos presos acabou em um
massacre após o plano ser iniciado e ser descoberto pelo sargento Gregório
Kovalenko. Isso resultou na captura de 4 presos que foram fuzilados na frente
dos outros demais, como tentativa de servir de exemplo. O professor Eduardo
Rocha comenta que foi algo digno de um campo de concentração.
O caso foi noticiado em diversos jornais, e foi muito mal
visto pela sociedade que ficou chocada. Isso contribuiu para o fechamento do presídio
em 1937. Então, uma parte da fábrica onde estavam as instalações do presídio foi vendida e a outra permaneceu com o governo.
‘’Meu avô contava histórias de muita tristeza que os presos
sofreram com Fillinto Muller (um dos comandantes da repressão). É uma página
triste da história daqui’’, conta o morador Dedé.
O ESPORTE EM DESTAQUE
A vila também sempre foi muito ligada com a cultura, que é
incentivada até os dias de hoje. A cultura do futebol foi marcante.
Famoso na várzea e cedendo grandes jogadores ao
Corinthians, o Clube Atlético e Recreativo Maria Zélia foi uma das grandes referências
de lazer na vila. O time foi fundado em 1919, por empregados da Companhia
Nacional de Tecidos da Juta, com o nome de Juta Belém Football Club. Em 1925,
mudou para Associação Athletica Scarpa e em 1935 foi rebatizado como Clube
Atlético e Recreativo Maria Zélia.
Com um grande clube de futebol de várzea, o time da vila
era tido como um dos melhores. O clube também ficou famoso por revelar grandes
jogadores como Nardo, Colombo, Roberto Belangero e Luizinho Pequeno Polegar.
Luizinho Pequeno Polegar, considerado um dos ídolos do Corinthians |
Todos jogaram juntos e, após uma partida contra o
Corinthians, em que o time da Maria Zélia venceu por 4 a 0, o presidente
corintiano resolveu contratar todos esses jogadores.
Além da várzea, o time também participou de campeonatos
conhecidos. Ficou duas temporadas na segunda divisão do campeonato paulista, em
1921 e 1922. Em 1925, participou do campeonato municipal organizado pela
Associação Paulista de Esporte e Athletica e em 1935, esteve na terceira
divisão do campeonato paulista.
Como AA Scarpa disputou o Campeonato Paulista da Terceira
Divisão, em 1926 e 1928; e no Campeonato Paulista da Segunda Divisão, em 1927,
1929 e 1930.
O clube também tem um marco incrível em sua história, o
time ficou 289 partidas invictas. Sem perder nenhum jogo desde 1962. Até que
tudo mudou em 1967, quando o time foi jogar contra o Clube Atlético Carrão, que
era mais fraco e ainda ia jogar fora de casa.
Tinha tudo para ser uma festa maravilhosa na vila, mas o
atacante Claudio, jogador do fluminense na época, que estava passando sua folga
em São Paulo, foi convidado para jogar pelo time da Vila Carrão e acabou com a
festa do time após fazer uma partida brilhante.
O jogo acabou 3 a 2 para o time do Carrão, e todos os torcedores do Vila Maria Zélia ficaram desolados com a derrota.
O jogo acabou 3 a 2 para o time do Carrão, e todos os torcedores do Vila Maria Zélia ficaram desolados com a derrota.
CLUBE ATLÉTICO E RECREATIVO MARIA ZÉLIA
O clube foi fundado pelos moradores, depois do time, e
muito mais que futebol, oferecia outras opções de lazer para os moradores da
vila, como cinema, bailes, bocha para mulheres, espaço de reunião para festas e
muito mais. Não só moradores frequentavam os bailes da vila, mas pessoas de
fora também. Foi um local de muitos encontros.
O terreno onde se localizava o clube era do INSS, que sempre
avisou que não deveriam construir nada caro, pois um dia a instalação seria
destruída. O que de fato ocorreu em 1976, quando o espaço foi destruído para
dar lugar ao atual AME da Vila Maria Zélia.
Ana Luiza diz que houve muito choro quando o clube foi demolido,
pois os moradores gostavam muito do lugar que havia sido espaço de tantas
histórias e encontros.
‘’Tentaram reconstruir no armazém da vila, mas não era a
mesma coisa, não tinha o campo de futebol’’, revelou.
Hoje em dia a vila ainda conta com algumas atividades, como
comemoração do aniversário em maio, festa junina, festa de final de ano,
apresentações culturais que a Associação Cultural da Vila Maria Zélia sempre
planeja para levar aos moradores.
A ASSOCIAÇÃO CULTURAL
Com mais de 20 anos de atuação, ela atua levando projetos
culturais na vila, para aproximar as pessoas. Ela já trabalhou realizando
diferentes oficinas, como oficina de fotografia com celular, photoshop e
grafite, serenata pelas ruas no final do ano, piquenique ao ar livre e bazares.
Dentre as atividades fixas, estão a turma de terceira idade
que faz fisioterapia (atividade paralisada por conta da pandemia) e uma horta
coletiva com moradores. Além disso, a cada dois meses eles criam visitas
guiadas para quem deseja conhecer a vila.
‘’Procuramos fazer atividades que juntem as pessoas e retomem
a história da vila, como por exemplo os grafites. Além de aprenderem grafite,
os jovens buscaram imagens e a história da vila‘’, explicou Ana Luiza.
A associação já realizou filme e livro sobre os 100 anos da
Vila Maria Zélia com depoimentos dos moradores. O objetivo é manter viva as
histórias da vila. O livro pode ser comprado na vila e o filme está disponível
no Youtube. Confira: https://www.youtube.com/watch?v=0a2uh5CFF7s
Localizada no antigo boticário, que além de servir para
receber as pessoas, também é lugar de exposições de fotos e dos trabalhos que
são realizados nas oficinas. Também abriga o centro de memória da vila maria
Zélia, que contem fotos e objetos.
Bailarina e coreógrafa, em 2014 Zélia resolveu realizar um
projeto na vila, organizando uma temporada de 2 meses para ser encenada no
local. “Enquanto dançava nas ruínas, é como se eu dançasse com todos os
antepassados da família, principalmente as mulheres’’, comenta a bailarina.
Zélia Monteiro/Veja SP |
Além disso, o
projeto catalogou todas as fotos e documentos que sua mãe, Celina Street, tinha
da vila, de Jorge Street e da Fiesp, federação que o industrial foi um dos
fundadores.
A digitalização e catalogação foram finalizadas e está em
processo de doação para o Museu do Ipiranga.
‘’Foi muito importante, porque junto com a memória
histórica, eu adentrava a história familiar, que passa pelos nomes das pessoas,
pelas mulheres da família’’, enfatiza.
Zélia conta que durante a busca das imagens com sua mãe
encontraram uma fotografia da família Street, na qual havia a jovem Maria
Zélia, dois meses antes de falecer. Na imagem, a menina aparece com um broche,
que a mãe da bailarina ainda guardava, e fez questão de presentear a filha com
ele.
Nesse dia, faziam exatos 100 anos que a foto havia sido
tirada. Zélia Monteiro conta que foi um momento muito forte, 100 anos depois
ganhar e tocar num objeto que era da Maria Zélia.
Foto da família Street em 1913 / Arquivo USP |
A bisneta também descobriu a importância de sua bisavó para
a criação da vila: ‘’muito se fala no Jorge Street, e pouco na Zélia, sua
esposa. Mas ele teve uma participação enorme em todo projeto social (da vila).
Tem muita foto dela na vila, com as professoras, com enfermeiras da creche. 3
vezes por semana ela trabalhava com as mulheres em projetos sociais e
educativos. Foi bem importante ver isso, era algo que eu não sabia, porque não
se falava muito. Então, ficou muito evidente esse papel dela nisso tudo. Esses
eventos religiosos, culturais, sociais e educativos, tinha muito a mão dela
nisso’’.
Ela cita que sua bisavó recebeu uma comenda papal, que foi
reconhecida pelo papa da época, Bento XV. A comenda foi doada para a Igreja da
Vila.
A VILA ATUALMENTE
A calmaria e o bem-estar estão presentes na vila, o que
agrada seus moradores. O zelador conta que o local sempre foi um paraíso na
terra, onde todos, até os animais, vivem na mesma sintonia e parecem até ser da
mesma família.
‘’Ainda hoje, não temos roubo nem assaltos por aqui, nunca
mexeram com nossas crianças. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa
história’’, diz Dedé. ‘’digo para as visitas que aqui é um pedacinho do céu’’,
conclui.
Capela de São José do Belém / Foto: Tiago Queiroz - 2010/ Estadão |
Apesar de grande, a vila que atualmente tem 121 casas, é um
lugar que a maioria das pessoas se conhece, mesmo que apenas de vista. Além de
calmo, é um bom lugar para as crianças brincarem livremente. Um lugar raro em
meio à movimentada São Paulo, e uma ótima dica de quem quer conhecer um pouco
mais da história da cidade.
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